(publicado originalmente no Estadão, 14/08/2010)
É ingrato escrever sobre jazz. Dificilmente conseguimos traduzir a música em palavras. Há quem consiga. Um deles é o inglês Geoff Dyer, 52 anos, autor do romance "Jeff em Veneza, Morte em Varanasi" (Intrínseca). Dele já saíram no Brasil "Ioga Para Quem Não Está Nem Aí" e "O Instante Contínuo" (sobre fotografia), alé, de "Todo Aquele Jazz" (1991), talvez o melhor livro já escrito sobre o assunto.
Em seu livro de poemas, "México City Blues" (1959), Jack Kerouac dizia: “Quero ser considerado um jazz poeta improvisando um longo blues numa jam session de domingo à tarde.” Kerouac era um “prosodista do bop” e tentava injetar em sua escrita a sintaxe do próprio jazz: as frases velozes e estratosféricas de Bird, os silêncios carregados de significado de Monk. Geoff Dyer investe menos na técnica do jazz e mais em sua emoção. "Todo Aquele Jazz" traz os perfis dos saxofonistas Lester Young, Ben Webster e Art Pepper; dos pianistas BudPowell e Thelonious Monk; entre outros. Os capítulos são interligados pela odisséia de Duke Ellington através da América no carro dirigido por seu saxofonista Harry Carney, um autêntico road movie enriquecido pela narrativa literária de Dyer.
Visceralmente ligado no jazz, o argentino Julio Cortázar escreveu um conto de 60 páginas inspirado no saxofonista Charlie Parker ("El perseguidor") e textos sobre Thelonious Monk, Clifford Brown e outros. Seu personagem autobiográfico Lucas quer ouvir duas coisas na hora de morrer: “o último quinteto de Mozart e o solo de piano de "I Ain’t Got Nobody" pelos dedos de Earl 'Fatha' Hines”. Muitos consideram "Rayuela/O Jogo da Amarelinha" uma jam session literária. O escritor Antônio Torres (que definiu o sopro de Miles Davis como “um cão uivando para a Lua”) dirigiu recentemente uma oficina literária em torno de Cortázar, "El perseguidor e o jazz".
E os críticos americanos? Um dos raros que conseguiu fugir aos clichês e fazer música em seus textos foi Whitney Balliett. Morto em 2007 aos 80 anos, escreveu para a revista The New Yorker de 1954 a 2001. Um exemplo do seu estilo: “ Em 1938, Ella gravou uma paródia de canção infantil, "A-Tisket, A-Tasket", e alcançou seu primeiro grande hit. Um ano depois, Billie fez Strange Fruit, uma “Guernica” sobre linchamento, que foi a coisa mais próxima de um hit que ela jamais conseguiu alcançar. O clarinetista de jazz Tony Scott certa vez resumiu assim as duas intérpretes: “Uma cantora como Ella diz ‘Meu homem me deixou’ e você acha que o sujeito foi à rua comprar pão ou coisa parecida. Mas quando Lady diz ‘Meu homem se foi’, você pode ver o sujeito descendo as ruas, de malas feitas, e ele nunca mais vai voltar. Na verdade, foi Billie quem, ao se destruir, fez as malas e partiu, enquanto Ella, aos 75 anos, continuou cantando.”
E o jazz contado pelos próprios músicos? Em 1955, Nat Shapiro e Nat Hentoff publicaram uma coletânea de depoimentos Hear Me Talkin' to Ya: The Story of Jazz by the Men Who Made It. Todos os grandes de todas as épocas estavam vivos e desfiaram suas memórias. O livro abre com Danny Barker, banjoísta, numa evocação proustiana do “berço do jazz”: “Uma de minhas melhores lembranças de garoto em New Orleans era a de como um bando de crianças que brincava na rua subitamente ouvia sons. Era uma espécie de fenômeno, como a Aurora Boreal, talvez. Os sons de homens tocando eram tão claros, mas nós não tínhamos certeza de onde vinham. Então começávamos a trotar, a correr – É pra cá! É pra lá! - e, às vezes, depois de correr por algum tempo, a gente se dava conta de que não estava nada perto daquela música.”
Pena que no Brasil não se tenha feito com a MPB o trabalho que os dois Nats fizeram com o jazz. O que mais se aproxima são os depoimentos gravados pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro a partir de 1966. São mil depoimentos, quatro mil horas de gravação. Quem sabe não se poderia editar, a partir deles, uma história oral da MPB? Algo com um título descontraído como Conversa de Botequim ou E Por falar em Saudade...
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