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QUE DEUS ABENÇOE A CRIANÇA CENTENÁRIA BILLIE HOLIDAY (por Chico Marques)

ilustração de Eliardo França



Antes de Billie Holiday, as cantoras eram apenas crooners.

Que cantavam canções do Great American Songbook
 de acordo com o andamento determinado pelas Orquestras
das quais faziam parte na linha de frente.

A partir de Billie Holiday, tudo mudou. 

Billie inaugurou a era da voz como instrumento,
 da cantora como membro da banda.

Não foi à toa que era chamada por seus bandmates
 de "Lester Young do Jazz Vocal",
 tamanha a semelhança entre seus fraseados vocais
 e os fraseados do sax tenor de Lester,
 com quem tocava com frequência.

  Estamos celebrando nesta terça,
 7 de Abril de 2015,
 os 100 anos do nascimento de Lady Day,
 não como uma formalidade cronológica,
 mas como um momento de reflexão vital para o jazz.

Graças a Billie Holiday,
 inúmeras cantoras não muito aparelhadas tecnicamente,
 mas com o sentimento na dose certa,
 o posicionamento correto perante sua banda,
 e um approach original nas interpretações,
 conseguiram um lugar ao sol na cena do Jazz.

Por conta dessas cantoras 
(e de muitos cantores também,
 pois Billie encantou tanto cantores quanto cantoras,
 o Jazz se viu obrigado a rever
 muitos de seus conceitos iniciais.

E cresceu.


Existem muitas cantoras profundamente influenciadas
 por Billie Holiday ao longo das últimas décadas
 que não cansam de anunciar a dívida que possuem com ela,
 começando por Carmen McRae,
 passando por Della Reese e Dee Dee Bridgewater,
 e chegando a Dianne Reeves e Cassandra Wilson. 

Dee Dee Bridgewater promoveu seis anos atrás
 uma bela homenagem a Billie Holiday num disco adorável
 chamado "To Billie With Love From Dee Dee",
 que surpreendeu justamente pelo excesso de reverência,
 já que Dee Dee nunca foi uma cantora
 com uma atitude conservadora.

Já Cassandra Wilson preferiu seguir pela contramão.

Nada mais natural, já que desde cedo ela trabalha
 um repertório tão eclético quanto o que Billie
 praticava nos Anos 1930, 1940 e 1950. 

Pois agora, Cassandra chega com um disco
 inteiramente dedicado a Billie Holiday,
 chamado "Coming Forth By Day",
 mais um triunfo artístico desta grande cantora,
 que sempre deixa sua marca altamente pessoal
 em todos os projetos em que se envolve.

Como de hábito com Cassandra Wilson,
 ela reinventa o repertório de Billie com reverência artística,
 mas evita ao máximo qualquer reverência estilística.

Toma tantas liberdades com o repertório de Lady Day,
 fazendo uso de instrumentistas de rock em várias canções
 e apostando em arranjos modernosos e minimalistas,
 que certamente vai ficar engasgada na goela
 da maioria dos fãs mais ortodoxos de Lady Day.



Mas não se enganem:

De todos os discos que vêm chagando ao mercado
nos últimos meses ma esteira das homenagens
 aos 100 anos de nascimento de Billie Holiday
 -- e acreditem, não são poucos --,  
"Coming Forth By Day" é o único realmente grande,
 e o único genuinamente vital para o jazz,
 gostem vocês ou não das ousadias de Cassandra Wilson.


 Billie Holiday nasceu Eleanor Fagan Gough.
Teve o nome Billie escolhido pela mãe, Sadie,
 numa homenagem à atriz Billie Dove.
Já o sobrenome Holiday veio do pai, Clarence Holiday,
 músico que tocava na Orquestra de Fletcher Henderson.

        Billie oassou a adolescência em meio à barra pesada
 e chegou a ganhar uns trocados como prostituta
 num bordel no final dos anos 20,
 quando sua mãe levou-a para Nova York,
 onde se envolveu novamente com drogas e prostituição.
Mas descobriu que queria mesmo é ser cantora
 e apostou todas as suas cartas nisso.
Começou a cantar no Harlem, até que em 1933
 impressionou o descobridor de talentos John Hammond,
 que conseguiu que Benny Goodman a ouvisse.
 Daí para a primeira gravação, foi um passo.
 E um passo decisivo para a carreira de Billie Holiday.


John Hammond ouviu Billie cantando no Nonette Moore,
 um bar clandestino que existia na West 133rd Street.
Segundo o próprio Hammond,
 “ela cantava como se tivesse conhecimento da vida”.
 Sua voz, carregada de emoção e influenciadíssima pelo blues,
 inaugurou no jazz uma maneira suave de manipular
 doses cavalares de lirismo e de sensualidade, 
indo onde nenhuma cantora de jazz jamais esteve.

 A concepção do fraseado de Billie foi única e insuperável.
 E seu domínio sobre o que cantava foi completo.
 Nenhuma cantora, até hoje, conseguiu viver a música
 com a intensidade de Billie.

 O prazer e a dor,
 a sofisticação e a marginalização,
 os grandes clubes e a prisão,
 a sedução e a melancolia,
 a suavidade e a exasperação,
 o sucesso e a discriminação
 acentuaram os contornos que tornaram
 o mito Billie Holiday indestrutível
 para muito além de seus breves 44 anos de vida.

 Até mesmo o ouvinte mais desavisado, 
certamente será irremediavelmente seduzido 
 por sua voz docemente amarga
 e por sua capacidade de viver a música
 com uma intensidade apaixonante e apaixonada.


A carreira de Billie Holiday está devidamente preservada
 e muito bem documentada.

 A Columbia Records é a detentora de jóias
 como a primeira gravação da cantora,
 em 27 de novembro de 1933, em Nova York: 
a canção “Your Mother’s Son-In-Law”, 
com Benny Goodman e sua Orquestra, 
trazendo nada mais nada menos que craques como
 Charlie Teagarden e Shirley Clay (trompetes),
 Jack Teagarden (trombone), Art Karle (sax tenor),
 Buck Washington (piano), Dick McDonogan (guitarra),
 Artie Bernstein (baixo) e Gene Krupa (bateria).

Esta e outras 152 canções com Billie Holiday,
 gravadas de 1933 a 1942, integram a coleção
 “The Quintessential Billie Holiday”,
 composta por 9 volumes que, no Brasil, foram lançados
 em LP e CD a partir de 1987,
 totalmente rematrizadas digitalmente 
a partir dos tapes analógicos originais.

As gravações desta fase trazem Lady Day
 acompanhada por pequenas formações,
 muitas delas lideradas pelo pianista Teddy Wilson.
 Cobras do primeiro time do jazz são coadjuvantes:
 Ben Webster (sax tenor),  Roy Eldridge (trompete),
 Johnny Hodges (sax alto),  Harry Carney (clarineta),
 Lester Young (sax tenor), Freddie Green (guitarra),
Philly Jo Jones (bateria),  Benny Carter (sax alto),
 Harry Edison (trompete), Don Byas (sax tenor),
 Kenny Clarke (bateria) e muitos outros.

Billie também cantou à frente das Orquestras de
 Fletcher Henderson, Jimmie Lunceford, Count Basie.
 Cantou até com os ‘brancos’ de Artie Shaw.
 Mas, em 1939, optou por fixar base em Greenwich Village,
 no sofisticado Café Society,
 e na década de 40 consolidou sua reputação
 como a maior cantora de jazz de seu tempo.
    

O fundamental era como Billie Holiday cantava
 e não o que cantava.

Ao aliar técnica, flexibilidade e impacto vocal,
 ela virou um divisor de águas no canto jazzístico,
 transformando tudo o que cantava
 em música visceral e da melhor qualidade.

  Este aprimoramento de estilo
 veio acompanhado de muita dor,
 pois Billie sempre cantou o que vivenciou.
Toda a sua exploração de nuances
 e também sua sutileza interpretativa
 conviveram no fio da navalha
 com a turbulência que marcou sua vida
 e com a rejeição explícita ao racismo.

Além dessas gravações de início de carreira,
 outras preciosidades gravadas por Lady Day pela Columbia
 também podem ser encontradas no mercado.

 Em “Lady in Satin”,
 um dos seus LPs mais intensos e menos jazzísticos,
Billie contracena com Ray Ellis e sua Orquestra,
 em gravações emocionantes e desconcertantes
 registradas em Fevereiro de 1958,
 em Nova York.

Sua voz já não era mais a mesma então,
 estava irremediavelmente debilitada.
 mas a intensidade das interpretações é um assombro.


A Verve Records, por sua vez, resgatou gravações
realizadas ao longo de toda a década de 1950,
 com Billie em pleno domínio de seus poderes.

Nelas, a maturidade prevalece,
 apesar das marcas provocadas pelas drogas
 e pela bebida em sua voz.

São dez CDs que reúnem gravações indispensáveis,
 preciosíssimas, acomodadas num box de luxo
 e acompanhadas de um libreto muito bem concebido
 que conta em detalhes toda a sua trajetória
 nos anos em que esteve sob contrato com a Verve.


Para quem acha 10 cds um exagero,
 uma ótima opção para quem quiser o melhor
 da passagem de Billie pelo selo de Norman Granz
 é a coletânea “The Billie Holiday Songbook”,
 com 14 canções gravadas entre 1952 e 1958,
 com ela cercada de feras como
 Kenny Burrell (guitarra), Oscar Peterson (piano),
 Freddie Green (guitarra), Ray Brown (baixo),
 Roy Eldridge (trompete), Coleman Hawkins (sax tenor),
 Al Cohn (sax tenor), Harry ‘Sweets’ Edison (trompete),
 Barney Kessel (guitarra), entre outros.


Minha escolha pessoal, no entanto, é esta aqui.

“Last Recording” é seu disco derradeiro,
 o segundo encontro de Billie Holiday
 com a Orquestra de Ray Ellis, 
gravado um ano depois das sessões
 que compõem o LP "Lady In Satin",
 nos dias 3, 4 e 11 de Março de 1959, em Nova York,
 quatro meses antes de sua morte.

 São 12 faixas devastadoras e arrepiantes.

E, claro, emocionantes.

   
 Billie Holiday nunca teve medo de ser expor,
 mesmo quando já estava com a voz bem debilitada
 e sua beleza completamente arruinada
 pelas drogas e pela bebida.

 No livro “Hear Me Talkin’ To Ya”,
 de Nat Hentoff e Nat Shapiro,
 a própria Billie conta uma história desconcertante,
 que revela toda a sua grandeza:

 “Um dia estávamos, minha mãe e eu,
 com tanta fome que mal conseguíamos respirar.
 Fazia um frio infernal.
 Eu saí pela porta e andei  da 145th Street até a 133rd,
 descendo a Seventh Avenue,
 parando em todos os lugares
 tentando conseguir emprego.
 Por fim, fiquei tão desesperada
 que parei no Log Cabin Club,
 dirigido por Jerry Preston.
 Eu disse a ele que queria uma bebida.
 Não tinha um níquel.
 Pedi gin e tomei um gole.
Pedi a Preston um emprego,
 disse a ele que era dançarina.
 Ele me disse para dançar.
 Eu tentei.
 Ele disse que eu fedia.
 Eu disse a ele que sabia cantar.
 Ele disse: cante.
 Num canto do bar havia um sujeito tocando piano.
 Ele atacou ‘Trav’lin’ e eu cantei.
 Os fregueses pararam de beber.
 Eles se viraram e olharam.
 O pianista, Dick Wilson, passou para ‘Body and Soul’.
 Nossa, você precisava ter visto aquelas pessoas,
 todas começaram a chorar. 
Preston se aproximou,
 sacudiu a cabeça
 e disse: Garota, você venceu!”.





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